terça-feira, 8 de julho de 2008

A TRAIÇÃO DOS CELULARES




Leitura de fatos violentos publicados na mídia

Ano 8, nº 25, 07/07/08
A TRAIÇÃO DOS CELULARES




Cenas de sexo envolvendo garotas têm sido, ultimamente, objeto do noticiário em nosso País. Boa parte das matérias se refere a imagens que são gravadas através de aparelhos celulares. As garotas são crianças ou adolescentes, algumas se encontram nas cenas fazendo sexo com seus namorados e outras estão sendo violentadas por rapazes. Elas, em geral, não sabem que estão sendo filmadas e, muito menos que aquelas cenas serão veiculadas, posteriormente, através de repasse entre celulares ou pela Internet.



A prática é prevista como crime que pode levar a seis anos de reclusão. A notícia mais recente, em Salvador, dá conta de um jovem de 19 anos que teria gravado, por meio do celular, a relação que manteve com uma adolescente de 14 anos, conforme pode ser lido no jornal Correio da Bahia em seis de julho de 2008. De acordo com a informação do periódico, o jovem teria confessado o crime na Delegacia Especializada para Repressão de Crimes Contra a Criança e o Adolescente (DERCA), porém se justificou afirmando “que produziu a filmagem a pedido da estudante”. Ele ainda informou que não é o responsável pela divulgação das cenas, suspeitando de um colega a quem emprestou o celular.

Esta leitura pretende tratar de uma forma de irresponsabilidade praticada por indivíduos, neste caso, pelo jovem de 19 anos, sobre a qual cria-se a impressão de que a ocorrência se deu contra a sua vontade. Mesmo que o registro tenha se dado em resposta ao pedido da adolescente, conforme diz o acusado, isto não retira dele a sua condição de pessoa adulta, apesar de jovem. Além disto, mesmo sabendo ele da existência de imagens relativas à intimidade da adolescente, emprestou o aparelho ao amigo e aí a situação parece ter fugido a seu controle e ele, portanto, já não se sente mais responsável pelas conseqüências daí decorrentes.

A idéia de que as imagens saem por aí, quase que por conta própria, se aproxima muito da concepção de imagens auto-geradas ou de gravações espontâneas. Sobre isto, convém recordar de um requisito básico de operação: para que as imagens sejam gravadas é preciso que alguém aperte o play. Esta regra vale para todos os equipamentos que utilizamos em nosso cotidiano, não obstante os avanços tecnológicos. Pode-se falar do domínio exercido pelos objetos em nossa época, porém tal dominação não se dá no plano da auto-gestão dos equipamentos e sim pelo fascínio que eles exercem sobre os indivíduos.

Cabe explorar o referido fascínio na tentativa de refletir sobre as justificativas que têm sido dadas pelas pessoas que sofrem as acusações aqui tratadas. Nos grandes sistemas informatizados há indicações claras da poderosa presença dessas tecnologias em nossas vidas, basta lembrar das dificuldades que encontramos quando o “sistema cai”, gerando uma impotência generalizada. À distância e fora da nossa capacidade de intervenção ELE (o sistema) volta a funcionar, dando-se a impressão de que ELE é quem manda, é cheio de manias e quando acha de cismar... Mas não é nesta dimensão que as ocorrências ilegais aqui tratadas são verificadas, ao contrário, as situações não são descritas como típicas de receptores que ficam a mercê de uma esfera de emissão que não corresponde às expectativas. Trata-se de emissores que escolhem o que deve ser o conteúdo da mensagem e isto é feito anteriormente ao acionamento da máquina.

Depois da primeira decisão, com a máquina já compreendida na trama, existe a escolha sobre o que fazer com as imagens e, portanto, o descontrole sobre estas é resultado de uma opção. Ao que parece, a liberação das cenas tem sido uma das alternativas adotadas, correspondendo ao sentido pelo qual as mesmas estão sendo geradas. Talvez até as imagens estejam se tornando mais importantes que o ato retratado o qual, por sua vez, se torna um mero provedor, indispensável ao desejável registro das cenas.



Esta impressão sugere mais um viés da rendição ao mundo da imagem e um distanciamento do mundo real. Depois, sob o efeito da presença da autoridade policial, o “dono do play” invoca o descontrole da máquina e não o seu próprio desgoverno, sua própria irresponsabilidade. E nascem, assim, as fábulas dos celulares traiçoeiros e das imagens infelizes.

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