Muito oportuno o texto de Ligia Martins de Almeida publicado ontem, 01/07, pelo Observatório da Imprensa, que repercute primoroso artigo, este da feminista Eva Blay, publicado no suplemento Aliás deste domingo, 29, (que o Estado de S.Paulo disponibiliza para assinantes), sobre a repercussão da morte de Ruth Cardoso na mídia.
A personalidade firme e o currículo da antropóloga forçaram algo difícil de alcançar: uma unanimidade na imprensa ao valorizar esses aspectos, abandonando o lugar comum de falar das "primeiras-damas" - e das mulheres na política em tom de banalização.
Oportunamente, Ligia lembra que os "jornais começam a relevar o perfil das candidatas a primeira-dama nos Estados Unidos, com direito a escândalos familiares e comentários sobre roupas e estilo pessoal" e conclui: "as mulheres precisam ser muito especiais para merecer um tratamento diferenciado por parte da imprensa".
Às vésperas do início da campanha eleitoral brasileira para as prefeituras, em que muitas candidatas são mulheres, esta artigo é uma boa leitura para retomarmos a discussão sobre mulheres na política. Transcrevemos o artigo na íntegra.
"A IMPRENSA E AS PRIMEIRAS-DAMAS"
Por Ligia Martins de Almeida em 1/7/2008
"Ela conseguiu. Poucas vezes se viu tanta unanimidade. Jornais, rádio, televisão, ao informar que perdemos Ruth Cardoso, destacavam, em primeiro lugar, sua atividade profissional: `Ruth Cardoso, antropóloga´. Em seguida vinha a informação de que era mulher do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A identificação era relativa à sua carreira, aos livros que escreveu, às pesquisas que fez, a seu trabalho como professora. E tudo convivia plenamente com o carinho pelos filhos, os netos e a vida como companheira constante do marido." (O Estado de S.Paulo, 29/06/2008)
O artigo de Eva Blay (cientista social, militante feminista, professora da USP e ex-senadora) dado no Estadão foi absolutamente preciso ao analisar a cobertura da imprensa sobre a morte de Ruth Cardoso.
Em meio a dezenas de artigos até editoriais sobre o papel da antropóloga que deu nova dimensão ao cargo de primeira-dama, o texto de Eva Blay merece destaque não apenas por fazer o comentário da mídia, mas por ser uma voz feminina falando da mulher que foi um dos mais belos exemplos de discrição e competência neste país, especialmente entre as que ocuparam o posto de primeira-dama:
"Competente, discreta e avessa à visibilidade pública, não se deixou vencer pelo poder nem pela sina anti-republicana de que esposas de presidentes cuidam da caridade estatal. Compreendeu o espaço de criação política que se abria com a posse de Fernando Henrique e o desafio que lhe tocava quanto a quebrar rotinas e inovar. Ruth criou o Comunidade Solidária para substituir a prática do assistencialismo estatal por uma prática moderna de distribuição de conhecimentos e valorização da cultura e do capital social da própria população pobre."
Um trabalho diferenciado
A leitura do artigo de Eva Blay torna-se mais interessante ainda no momento em que os jornais começam a relevar o perfil das candidatas a primeira-dama nos Estados Unidos, com direito a escândalos familiares e comentários sobre roupas e estilo pessoal.
Do lado republicano, aparece Cindy, "uma belíssima milionária". A belíssima milionária (18 anos mais moça que o candidato John McCain) já mereceu perfil na sofisticada revista Baazar, falando de sua origem, da fortuna familiar (ela é herdeira da maior distribuidora de cerveja dos EUA) e até de vícios superados (foi dependente de remédios, chegando até a cometer atos ilegais para consegui-los).
Mas, para a imprensa brasileira, o significado que a loira representante da elite norte-americana terá na Casa Branca no caso do marido ser eleito tem pouco interesse. Interessa mais a figura da ex-mulher, protagonista de uma trágica história pessoal: vítima de um acidente de carro, deformada fisicamente, acabou abandonada pelo marido e trocada pela jovem rica que impulsionou a campanha política do ex-piloto da Marinha.
Do lado democrata surge Michelle Obama, a jovem negra nascida num bairro pobre de Chicago, advogada de sucesso, formada por duas importantes universidades norte-americanas. Para a imprensa brasileira, Michelle é notícia pelo porte e pelas roupas que veste. Em Veja (edição nº 2067) é mostrada em fotos, comparando-a com Jacqueline Kennedy e Sara Jéssica Parker. "Não é coincidência diz a revista "que as roupas de Michelle tenham um arzinho de Sarah Jéssica Parker, além das evidentes referências a Jacqueline Kennedy, ícone supremo de elegância. Michelle tem um tremendo senso de estilo, mas evidentemente recebe ajuda profissional para se vestir como o que almeja ser: primeira-dama."
A leitura dessas matérias as sobre Ruth Cardoso e as mulheres dos candidatos norte-americanos nos fazem concluir que as mulheres precisam ser muito especiais para merecer um tratamento diferenciado por parte da imprensa. Enquanto foi primeira-dama (denominação que ela abominava), Ruth Cardoso deixou a mídia numa posição difícil: fazia um trabalho diferenciado e não dava margem a comentários sobre suas roupas, maquilagem, fofocas e outros detalhes sobre mulheres que parecem ser o tema predileto da imprensa quando o assunto feminino está em pauta.
Artigo publicado no Observatório da Imprensa em 01/07/08.
Angela Freitas/ Instituto Patrícia Galvão
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